20 junho 2006

Foram-se os filhos, netos e noras


Comprei esta casa em 1990. Meu filho mais novo estava quase a fazer seis anos. Mesmo em frente da casa, "o poço", depósito de água da Câmara, era o campo de futebol cá da zona. Nada mais havia onde os miúdos se pudessem entreter.
Nascido em Lisboa, num apartamento, meu filho logo se sentiu atraído por aquela brincadeira toda e era vê-lo, olhos pregados ao jogo, com nítida vontade de para lá ir.
Achei que aquela convivência lhe faria bem. Impus-lhe regras e deixei-o ir. Meia hora, uma hora, nada mais que isso.
Não lhe chegava. Voltava para casa, triste, e lá ficava no quintal a ver jogar os outros. Expliquei-lhe que não o queria todo o dia na rua, mas que podia trazer os amigos cá para casa.
No princípio trouxe três. O número foi aumentando. Arranjei-lhes "a marquise" (um quarto com acesso directo ao quintal) e impus regras: palavrões nem pensar, quem não respeitasse a casa ficava proibido de cá entrar, quem viesse pela primeira vez tinha de me ser apresentado logo e só podiam brincar naquele quarto e no quintal.
O computador, as cartas, os game-boys e outros mais jogos que ali tinham passaram a ser a atracção fatal desta zona. Cheguei a cá ter um recorde de 15 miúdos ao mesmo tempo. Vinham todos. Com nove anos, meu filho trazia um amigo de 19 anos cá a casa.
Nunca me desapareceu nada. Nunca me faltaram ao respeito. Quando as suas vozes se elevavam demasiado, bastava-me um "meninos, façam pouco barulho".
Sempre que se magoavam na rua vinham em busca do meu auxílio. Não sei quantas vezes fui ao hospital com eles, quantos pensos coloquei, quanto consolo dei. Sei que sabiam que eu estava aqui.
Aquelas presenças aconchegavam a casa. Na minha sala, divertia-me ouvindo as suas risadas, sentindo que estavam felizes.
Só comecei a aperceber-me do efeito que aquela concentração de miúdos na minha casa tinha no sítio quando contratei uma vizinha para empregada doméstica. Começou por dizer-me que não sabia como é que eu admitia "aquilo". Expliquei.
Não entendeu. Chamava-lhes nomes. "Corja e canalha" eram os mais usuais. Tentava convencer-me a não os deixar entrar, até que um dia se achou no direito de expulsar um deles, o tal de 19 anos, conhecido na zona por roubar peças de lingerie dos estendais dos vizinhos.
Chamei-a e coloquei os "pontos nos is". Disse-lhe que tinha de respeitar os miúdos e que quem dava ou não ordem de entrada era eu e não ela.
Mandei chamar o rapaz expulso e, olhos nos olhos, disse-lhe: "Para mim, és o que fores daquele portão para dentro. Desde que continues a respeitar a casa és sempre bem vindo". De lágrima no olho, o miúdo explicou que só fazia "maldades" aos vizinhos porque eles troçavam do facto de a família ser pobre e viver numa gruta. Reafirmei-lhe a minha posição e foi comovida que, algum tempo mais tarde, vi o orgulho que teve em fazer questão de vir cá a casa mostrar-me a sua primeira farda de soldado. Achei uma ternura! Deixou de cá vir. Foi morar para outro sítio.
Quem, também, deixou de vir foi a empregada. Tempos depois, preferiu desertar a ter de aturar "aquilo".
O grupo foi-se burilhando. Com o passar dos tempos, a selecção natural fez com que ficassem apenas uns cinco ou seis habituais. Eram sócios honorários da casa. Já os sentia como filhos. Cresceram, namoraram e alguns deles casaram. Começaram a trazer as mulheres. Depois, os filhos. Senti que esta casa tinha uma função para eles. Eram a minha família.
O meu filho também casou. Ao contrário dos amigos, que viviam com os pais, o meu filho teve a sua própria casa. Senti que todo aquele grupo partia confiante de que "agora é que ia ser bom". Iam ter ainda mais liberdade.
Deixaram de cá vir. "Mudaram-se" para casa de meu filho. Foi sol de pouca dura. Pouco tempo depois já pressionavam o meu filho a voltar para casa da mãe. "Na casa da tua mãe é que era bom".
Sinto que esta casa lhes ficou no peito. Marcou as suas infâncias. Tenho pena que se tenham ido. A casa ficou vazia! Deixou de ser "a casa da canalha" cá da zona.
Tenho pena! Essa foi a melhor função que esta casa algum dia teve!

1 Comments:

Blogger MEHC said...

Encantadora narrativa. A 'casa da canalha' ainda se há-de voltar a encher, talvez de netos...

17/2/07 16:58  

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